sábado, 20 de outubro de 2007

Reforma Protestante: 490 anos de conquistas

Ao relermos a história do cristianismo, fica notório que a Reforma foi o instrumento de Deus para desfazer as trevas espirituais em que o mundo cristão estava imerso. Mas a influência protestante foi também marcante e decisiva na educação, formação da gramática de alguns povos e alfabetização de adultos; no fim do domínio da supersticiosidade no exercício da fé; na compreensão equilibrada da relação homem e mulher; na formação das leis e na política e economia de alguns povos.
O protestantismo sempre esteve ligado à educação. John Wycliffe, pré-reformador, fez a primeira tradução da Bíblia para o inglês, influenciando a sistematização da língua inglesa. Desde seus primeiros passos na Alemanha, a Reforma teve uma singular preocupação com o ensino. Em 1521, Martin Lutero publicou a Bíblia em alemão, o que os historiadores confirmam ter sido fundamental para a sistematização da gramática germânica. O próprio Lutero se encarregou de começar a sistematização da língua alemã. Em poucos anos, novas publicações da Bíblia em vários idiomas europeus foram realizadas, rompendo com o monopólio católico da Vulgata (versão latina do 4o século, feita por Jerônimo, e única até aquele período).
Como a maioria dos fiéis eram analfabetos, a Bíblia, de início, era lida apenas pelos pregadores. Mas isso não interessava aos protestantes, que sempre quiseram ver a Bíblia acessível a todos. Logo, o segundo investimento dos países de influência protestante foi a alfabetização em massa dos crentes, o que possibilitou a livre interpretação dos textos sagrados.
O missionário batista William Carey traduziu porções das Escrituras para dezenas de línguas e dialetos, sistematizando muitos deles. Tanto John Wesley como Carey e David Linvingstone deixaram para o mundo várias obras seculares importantes de cunho científico.
Em 1780, em Gloucester, no Centro-Oeste da Inglaterra, o jornalista evangélico Robert Raikes criou a Escola Dominical, uma das maiores iniciativas de que se tem notícia na área de ensino. Aquela região era um polo industrial com grandes fábricas têxteis. As crianças trabalhavam nas fábricas ao lado de seus pais, de sol a sol, seis dias por semana. Enquanto seus pais descansavam do trabalho árduo no domingo, as crianças ficavam abandonadas nas ruas e praças esmolando, brigando e, nas palavras de Raikes, "perturbando o silêncio dos vizinhos". Elas eram criadas sem qualquer estudo que pudesse lhes dar um futuro diferente de seus pais. Muitos enveredavam pelo caminho do vício, violência e crimes.
No tempo de Raikes, não havia escolas públicas na Inglaterra, apenas escolas particulares, privilégio das classes mais abastadas. Assim, as crianças pobres ficavam sem estudar, trabalhavam a semana toda e viviam nas ruas aos domingos. Raikes, então, começou a reuni-las nas praças e depois em salões alugados, onde elas aprendiam a ler e escrever, as somas aritméticas e lições de moral, ética e educação religiosa. Em 1785, fundou a primeira Associação da Escola Dominical. No mesmo ano, fundou nos Estados Unidos a União das Escolas Dominicais.
Raikes pagava do seu próprio bolso um pequeno salário para as professoras. Com o crescimento da obra, pessoas altruístas começaram a contribuir. É sabido que várias crianças alcançadas por esse trabalho, antes sem perspectivas, se tornaram homens ilustres na Inglaterra e Estados Unidos.
O sociólogo Max Weber, em sua célebre obra A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, afirma que o progresso econômico e social de algumas nações destacadas de sua época se devia justamente à formação marcantemente protestante dessas nações, formação esta que traz em seu cerne princípios morais e éticos que favoreciam a expansão da economia. Na abertura de seu primeiro capítulo, ele afirma: “Uma simples olhada nas estatísticas ocupacionais de qualquer país de composição religiosa mista mostrará, com notável freqüência, uma situação que muitas vezes provocou discussões na imprensa e literatura católicas e nos congressos católicos, principalmente na Alemanha: o fato de que os homens de negócios e donos do capital, assim como os trabalhadores mais especializados e o pessoal mais habilitado técnica e comercialmente das modernas empresas, é predominantemente protestante”.

Superstição e sexo

O protestantismo também foi um dos grandes catalisadores do fim da superstição da Idade Média, implementado por um catolicismo cada vez mais decadente. O mundo medieval era cheio de fantasmas, duendes, gnomos, demônios, anjos, santos, um mundo mentalmente carregado. Nesse mundo, Cristo era fraco, os demônios eram fortes e os anjos e santos importantes. Veio, então, a Reforma e centralizou tudo na cruz de Cristo, que representa a vitória para todo o que crê em Deus e sinceramente o serve. Infelizmente, há muitas igrejas que parecem querer reeditar esse hostil mundo cósmico através de uma má interpretação do tema batalha espiritual.
Quanto ao sexo, os protestantes, com o passar dos séculos, foram formando uma visão equilibrada. No catolicismo, o sexo era maldito. A teologia patrística ensinava a seguinte relação entre o sexo e a vida cristã: quanto menos atividade sexual, mais santidade; quanto mais sexo, menos santidade. Por isso aos padres foi proibido o casamento. Orígenes chegou a se castrar para “poder melhor servir a Deus”. Os primeiros pensadores da Reforma condenaram tal pensamento, acabaram com a visão do corpo como algo maldito e colocaram o sexo no seu devido lugar, como algo criado por Deus para o ser humano e que só se torna pecado quando realizado fora dos parâmetros estabelecidos pela Palavra de Deus.

Economia, política e formação de leis

Durante a História, os reformadores se manifestaram politicamente em três vertentes: a aristocrata, a liberal e a progressista. Os luteranos e anglicanos eram muito ligados à aristocracia e à sociedade estatal. O calvinismo, por sua vez, abriu espaço para a burguesia e criou o caminho para uma democracia de linha liberal, vide, mais uma vez, o sociólogo Max Weber em sua obra supracitada. Os anabatistas formavam uma ala contestadora, com uma reforma mais radical e que chegou a provocar a guerra dos camponeses.
Com o passar dos anos, a linha aristocrática se dissolveu, ultrapassada pela mudança dos tempos. A liberal, capitalista, consolidou-se pela própria História. A progressista também continuou existindo. No século 17, havia o Movimento dos Niveladores e dos Cavadores, que era socialista, e depois o Movimento Socialista Cristão nos séculos 18 a 20. Os progressistas sempre estiveram presentes na história do cristianismo, mas, por motivos históricos, sempre foram minoria.
No Brasil, os evangélicos sempre tiveram uma presença política progressista, contestadora, desde os tempos do Império. Foi só durante a ditadura que a igreja evangélica perdeu sua voz de contestação política, permanecendo apenas a luta contra a imoralidade e os vícios (interessante que hoje a sociedade encontra-se combatendo as drogas legalizadas – álcool e fumo –, o que é uma bandeira antiga dos evangélicos). No Nordeste, na primeira metade do século 20, vemos alguns sindicatos de trabalhadores sendo formados por agricultores pentecostais.
Os protestantes brasileiros concorreram muito para a abolição da escravatura. O primeiro missionário presbiteriano, Ashbel Green Simonton, escreveu em seu diário, no Rio de Janeiro, em 19 de julho de 1867: “Se ao menos puder ser removida a mancha da escravidão, esse incubo extirpado do corpo da nação, ainda que em algum dia distante, já será grande vitória”. Também contribuímos muito para a educação do nosso país, o que não era prioridade dos governantes de tempos passados. Uma das gramáticas brasileiras mais bem-sucedidas nos séculos 19 e 20 foi a do pastor Eduardo Carlos Pereira, que teve 150 edições. Os evangélicos construíram muitas escolas, hoje centenárias, em todas as regiões do país.
O jornal Imprensa evangélica, que circulou durante o Império, era contra a escravidão, contra uma religião do Estado e a favor de um sistema republicano. Naquela época, os evangélicos eram muito perseguidos. Se não, vejamos:
a) A Constituição de 1824 vedava aos evangélicos o direito de suas casas de culto parecerem templos.
b) Os protestantes não podiam propagar sua fé. Robert Kalley, missionário congregacional que inaugurou a Escola Bíblica Dominical no Brasil, sofreu muitas perseguições em Petrópolis (RJ) por causa disso, sendo até ameaçado de ser expulso da cidade.
c) Também não tínhamos garantia de emprego e, como se não bastasse, todos os colonos, fossem católicos ou não, deveriam contribuir com uma soma anual para a construção de uma igreja católica em uma determinada cidade que, muitas vezes, estava a mais de 200 quilômetros deles.
d) Só os católicos poderiam ser sepultados em cemitérios. Por isso os evangélicos construíram seus próprios cemitérios, quando não eram enterrados em qualquer lugar.
e) A Constituição do Império impedia o protestante de se candidatar, pois quem assumisse algum poder político deveria jurar "manter a religião Católica Apostólica Romana". Os não-católicos não podiam participar dos comícios.
f) O casamento protestante era considerado ilegítimo. O casamento era uma instituição religiosa regulada pelo Concílio de Trento e pelas Constituições do Arcebispado da Bahia. Assim, ele só seria válido, tendo todos os benefícios que a lei concedia, se fosse realizado por um padre católico. E mais: o padre só faria o casamento se o cônjuge protestante assinasse o compromisso de educar os filhos segundo os preceitos católicos. Chegou a se instaurar um processo contra duas pessoas que saíram da Igreja Católica para se casarem perante um ministro evangélico.
Muitas das belas conquistas sociais na nossa nação, hoje muito comuns, têm sua origem ou inspiração na luta protestante. As grandes contribuições sociais e políticas dos protestantes no Brasil foram o aumento da alfabetização tanto infantil como adulta, a liberdade de consciência através das escolas, a construção de novas instituições de ensino, a implementação de um regime democrata, o casamento civil, a liberdade de expressão, o fim da escravatura, a separação entre igreja e Estado, e diversas atividades humanitárias inspiradoras.

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Reforma Protestante: 490 anos depois, retrocesso

Em 31 de outubro, comemoram-se os 490 anos da Reforma Protestante, um dos maiores acontecimentos da história da Igreja, pois recolocou boa parte dos cristãos no caminho de retorno à Palavra de Deus, ao cristianismo bíblico. Contudo, infelizmente, apesar de todos esses séculos, pouco se compreende e valoriza o significado desse evento. Claro que não devemos nos prender ao passado, mas entender as implicações desse acontecimento é salutar por, pelo menos, três razões.
Em primeiro lugar, para discernirmos alguns posicionamentos do evangelicalismo hodierno. Afinal, o que é ser protestante? Se somos protestantes, o que significa isso? Em que têm reverberado até hoje os princípios reformistas? Será que estamos vivenciando atualmente, no meio evangélico brasileiro e mundial, algum retrocesso em relação à Reforma?
Em segundo lugar, conhecer o protestantismo é importante porque nos estimula a grandes empreendimentos no Reino de Deus. A história da Reforma é marcada por uma fé engajada e poderosa. A fé dos antigos protestantes e seus exemplos nos servem de inspiração para a vida cristã.
Por fim, em último lugar, saber nossa história, como se deu a trajetória da Igreja até os nosso dias, auxilia-nos a evitar equívocos futuros.
Tendo em mente isso, a partir de hoje quero dar início a uma série de três artigos sobre a importância da Reforma Protestante, artigos que serão postados ainda este mês. Este é o primeiro da série e, para começar, falaremos do atual retrocesso que boa parte dos evangélicos tem vivenciado em relação aos princípios do protestantismo.

O que é ser protestante?

O que é ser protestante?
Ser protestante é pregar e viver todos os princípios da Reforma. Quais são eles? Os principais são Sola gratia (só a graça), sola fide (só a fé), sola Scriptura (somente as Escrituras) e sola Deo gloriae (somente a Deus a glória). Esses quatro lemas básicos sintetizam as verdades de que a salvação é apenas pela graça de Deus, mediante a fé; Jesus é o único mediador entre Deus e os homens; as Sagradas Escrituras devem ser a nossa única regra de fé e prática; e só Deus deve receber adoração.
Nós, protestantes, não aceitamos o confessionário, o jejum nos moldes clericais e o celibato compulsório. Com base no que nos ensina a Palavra de Deus, não reconhecemos o primado e a autoridade papal (reconhecemos o papa apenas como um líder religioso, mas não como o representante máximo do cristianismo nem muito menos reconhecemos seus ensinos como infalíveis, seja quando fala "ex cátedra" ou não, ou mesmo em seu ofício de "repetir o magistério ordinário"). Não reconhecemos também o culto à Maria, mãe de Jesus, ou aos santos. Repugnamos a venda de indulgência (perdão) ou bênçãos, quaisquer que sejam; a supersticiosidade e o uso de iconografia na adoração (imagens); a canonização de cristãos e a salvação pelas obras; o mercantilismo da fé; a idéia do purgatório e orações ou cultos pelos mortos. Dos sacramentos ministrados pela Igreja Romana, só administramos, pela Bíblia, o batismo e a Santa Ceia, que não tem o mesmo significado e liturgia da eucaristia católica. Quanto ao batismo, há igrejas protestantes que se assemelham a Roma neste ponto, no que concerne à execução, mas não são maioria.
Sociologicamente, o protestantismo é dividido em três ramos: histórico, pentecostal e pára-protestante.
O protestantismo histórico é formado pelas igrejas constituídas a partir da Reforma. São elas a luterana, as reformadas, a presbiteriana, a anglicana, a batista, a congregacional e a metodista.
Pára-protestantes são as seitas que se originaram no meio protestante. A característica principal delas é asseverar que a doutrina que pregam, que vai além das Escrituras, trata-se de uma revelação divina especial que receberam. São exclusivistas. Nesse ramo, temos os mórmons, os adventistas e as testemunhas de jeová. De forma geral, só essas seitas protestantes são reconhecidas pela Sociologia. As demais são vistas como apêndices do pára-protestantismo.
O protestantismo pentecostal, terceiro e último ramo, é dividido pelos sociólogos em duas classes: pentecostalismo tradicional e neopentecostalismo. O pentecostalismo tradicional, do qual faz parte a Assembléia de Deus, nasceu com o mover do Espírito Santo no fim do século 19 e começo do 20. Vários protestantes de todas as denominações históricas redescobriram e receberam a experiência do batismo no Espírito Santo como bênção subseqüente à Salvação, com evidência física de se falar em outras línguas. Tal experiência significava um revestimento de poder do Alto, que possibilita ao cristão o uso de dons espirituais que há séculos haviam sido relegados pela Igreja. O título "pentecostal" é uma referência ao episódio de Atos 2, ocorrido no período da festa judaica chamada Pentecostes.
No início desse movimento, a idéia não era abrir novas igrejas, mas reavivar o fulgor protestante, fazendo com que os cristãos se voltassem a algumas doutrinas esquecidas. Como as igrejas não aceitavam tais manifestações, os cristãos "pentecostalizados", expulsos de suas congregações de origem, se agruparam e formaram outras igrejas, fazendo nascer o ramo pentecostal, consolidado durante os anos. Foi assim que nasceram as igrejas Assembléia de Deus, O Evangelho Quadrangular, Igreja de Deus, Igreja de Cristo, Assembléia de Cristo (essas três últimas são dos EUA; as brasileiras que detêm esses nomes, e não são fruto do trabalho de missionários dessas denominações norte-americanas, são neopentecostais), Igreja Pentecostal (há várias igrejas pentecostais tradicionais no mundo com esse título), etc.
Dentro do pentecostalismo tradicional, há algumas denominações mais novas que são incluídas, tais como O Brasil para Cristo (fundada em 1955) e as igrejas renovadas: Batista Renovada, Presbiteriana Renovada, Metodista Wesleyana, etc. Algumas destas últimas são um tanto recentes no Brasil, sendo mais antigas em outros países. Há outros sociólogos que classificam algumas delas como neopentecostais.
O neopentecostalismo surge na década de 70. Ele compreende denominações como a Universal do Reino de Deus, as comunidades evangélicas, os centros de evangelismo e adoração (muito comuns nos EUA), a Igreja da Graça e tantas outras. É incalculável o número de igrejas neopentecostais no Brasil. A cada semana nascem mais no nosso país. No mundo, então, é uma loucura. As igrejas neopentecostais são caracterizadas por modismos teológicos, inconsistências doutrinárias, o uso de elementos de toque na liturgia, a ênfase no exorcismo e curas, teologia da prosperidade e sincretismo religioso.
Apesar do grande número de igrejas neopentecostais no Brasil, há mais pentecostais históricos do que neopentecostais no Brasil. O problema é que a influência neopentecostal, principalmente pela mídia, é grande em nosso país, inclusive entre membros de igrejas pentecostais tradicionais.

Retrocesso

É evidente que apesar de os sociólogos terem colocado no bolo protestante seitas como os mórmons, os adventistas e as testemunhas de jeová, classificando-as como pára-protestantes, esses grupos não têm nada a ver com o genuíno protestantismo. Por quê? A partir do momento que temos como ponto fundamental da teologia protestante as Escrituras como única regra de fé e prática, e esses movimentos não observam isso, não podemos considerá-los protestantes. Há vários pontos esposados por esses grupos que se chocam frontalmente com a genuína doutrina bíblica.
Outra constatação é que o bojo neopentecostal também não pode julgar-se herdeiro da Reforma se seus princípios batem de frente com pontos básicos e inegociáveis do protestantismo. Não queremos generalizar, mas muitos desses grupos pregam e praticam coisas que envergonham o protestantismo. Em alguns casos, toda a doutrina protestante chega a ser destruída. Se não, vejamos: Não seria a promessa de felicidade, bênçãos e vitória através de uma contribuição financeira mais que generosa a volta do princípio da venda de indulgências e bênçãos? Não seria o uso de elementos como galhinho de arruda, sal grosso e copo d'água na liturgia uma volta ao misticismo medieval, tão condenado pelos reformadores? A teologia da maldição hereditária e da prosperidade não seriam um vilipêndio à doutrina da graça?