sexta-feira, 1 de junho de 2012

Sobre o artigo "O Profeta e Duas Irmãs", do senhor Carlos Heitor Cony

O senhor Carlos Heitor Cony, em artigo publicado em sua coluna de hoje (01/06/2012) na Folha de São Paulo, e intitulado “O profeta e duas irmãs” (leia AQUI), demonstrou total ignorância em relação à Bíblia. O tema do senhor Cony foi o livro do profeta Ezequiel. Na tentativa de desmerecer esse livro do Antigo Testamento e, com ele, toda a Bíblia, tratando o que vai no texto de Ezequiel como um absurdo, ele afirma as seguintes sandices:
1) Diz Cony que Deus mandou o profeta Ezequiel “comer, durante 390 dias, pão de cevada coberto de excremento humano”. Onde está escrito isso na Bíblia? Em canto nenhum! O texto onde é narrada essa história é o de Ezequiel 4.9-15, que não diz, em momento algum, que Ezequiel comeu excremento humano ou qualquer outro tipo de excremento. O que o texto diz é que Deus orientou Ezequiel a cozer bolos “sobre o esterco humano”, ou seja, usando o excremento humano como combustível para o fogo. Ora, se o senhor Cony não sabe, eu lhe informo: desde antes dos tempos de Ezequiel e até os dias de hoje, é costume no Oriente Médio pessoas usarem esterco de animais como combustível para o fogo. “Em áreas nas quais a madeira era escassa, o esterco de diversos animais servia de combustível. O de camelo era popular, mas nenhum judeu usava" (CHAMPLIN, R. N.; O Antigo Testamento Interpretado Versículo por Versículo, Editora Candeia, 2000, volume 5, p. 3.210). O esterco seco de homens só era usado em crises extremas, onde não havia sequer esterco de animais. O esterco seco de animais era o mais indicado para combustível, porque “tinha bastante palha não digerida, que dava mais qualidade ao combustível” (Ibid). Tal prática era considerada impura para os judeus, razão pela qual Deus diz a Ezequiel para cozer os bolos usando como combustível esterco – e logo esterco humano, o que seria ainda mais impuro –, porque Deus queria que Ezequiel representasse, diante dos judeus cativos na Babilônia, o que aconteceria naqueles dias com os seus irmãos judeus que estavam sofrendo o cerco dos caldeus a Jerusalém (586a.C.), e que era um permissão de Deus por suas impiedades, que sobrepujavam naquela época até mesmo a impiedade das nações pagãs à sua volta, com quem haviam aprendido essas abominações (Ezequiel 5.5-9).
O que Ezequiel fez foi uma representação profética da fome decorrente do racionamento de comida e água pelo qual passariam os judeus em Jerusalém durante o cerco de Nabucodonosor. Ezequiel deveria preparar o bolo usando “esterco seco para aquecer o seu forno. Só o pensamento disso já embrulharia o estômago de alguém. (...) O profeta deveria preparar este prato gastronômico nauseante publicamente, à vista do povo, para que eles pudessem ficar mais impressionados com a calamidade que se aproximava e que era simbolizada dessa forma. Na situação extrema da fome, eles não teriam à disposição nada que fosse delicioso e nada que fosse considerado limpo, mas deveriam aceitar o que pudessem conseguir” (HENRY, Matthew; Comentário Bíblico do Antigo Testamento – Isaías a Malaquias, CPAD, 2010, p. 635).
Como sabemos, Ezequiel nem precisou usar esterco humano, porque, a seu pedido, Deus permitiu que ele usasse como combustível esterco de vacas, o que era naturalmente aceito pelas pessoas, mas ainda considerado impuro pelos judeus (Ez 4.14,15). Lembrando ainda que mensagens teatralizadas eram muito comuns no Antigo Testamento. Há profusão delas nas páginas veterotestamentárias.
Ezequiel e outros milhares de judeus foram levados cativos à Babilônia na primeira leva que os caldeus fizeram de judeus, no ano 605 a.C., quando ocorreu a primeira guerra de resistência ao domínio de Nabucodonosor, rei dos caldeus. A segunda leva se daria no ano 597 a.C. e a última, em 586 a.C., quando Jerusalém é destruída.
Em suma, na passagem bíblica depreciada por Cony, Ezequiel está entregando uma mensagem dramatizada aos judeus no cativeiro, antes da destruição de Jerusalém, dizendo-lhes: “Não pensem que nossos irmãos remanescentes em Jerusalém vão vencer aos caldeus. Não! Deus permitirá, por causa das impiedades do nosso povo, que o exército de Jerusalém perca a batalha contra o domínio dos caldeus, e o cerco deles à nossa cidade se prolongue, levando o povo de Jerusalém à fome e, consequentemente, a comer coisas feitas de forma impura para sobreviver”. Mais adiante, Deus prediz ainda que, pelo prolongamento do cerco, a comida vai se acabar totalmente, ao ponto de as pessoas se matarem, inclusive familiares matarem uns aos outros, ocorrendo até mesmo o horrendo canibalismo (Ezequiel 4.10). Isso realmente aconteceu, como registrado por Jeremias, que estava em Jerusalém (Lamentações 4.4,5,10). Quando as coisas chegassem a esse ponto, os judeus capitulariam diante dos caldeus, que destruiriam Jerusalém nessa ocasião. A cidade só seria reconstruída décadas depois, quando o Império Medo-Persa substituiria o Império Babilônico. A história da reconstrução está narrada, principalmente, no Livro de Neemias.
Os caldeus só impuseram esse cerco aos judeus porque estes não aceitaram servir-lhes pagando seus altos impostos, enquanto Deus, que sempre livrara Israel em tantas outras batalhas desse tipo, dizia que, desta vez, pelos grandes pecados de Israel, não os socorreria. Que pecados eram esses? O livro do profeta Habacuque lista alguns: violência e corrupção generalizadas (Habacuque 1.1-4). E mais: poucos anos antes, sob o reinado de Manassés, alguns judeus começariam a praticar em Jerusalém coisas ainda mais abomináveis, como infanticídio e feitiçaria, que haviam aprendido com os povos pagãos, o que despertou a indignação divina (2Reis 21.9). O livro do profeta Jeremias, contemporâneo de Ezequiel, é, na sua maior parte, sobre esse tema do cerco: é Deus dizendo, por meio do profeta Jeremias, que, dessa vez, não iria ajudar Israel para que vencesse suas batalhas contra os opressores, e que, portanto, seria tolice lutar contra os caldeus crendo em vitória. Deus diz que o povo, se quisesse evitar o pior, deveria se entregar, e não lutar, mas que, no futuro, se eles voltassem aos valores que Ele lhes dera, voltariam a ser livres.
2) Cony afirma que os relatos registrados no Livro de Ezequiel são atribuídos “ao Espírito Santo ou a Moisés”, o que demonstra mais uma vez total desconhecimento da história e do texto bíblicos. Ora, ninguém, seja um bibliologista ortodoxo ou um liberal, atribui a autoria do livro de Ezequiel a Moisés. Simplesmente, Moisés viveu mais de 500 anos antes de Ezequiel! A autoria de Moisés é atribuída apenas ao Pentateuco (os cinco primeiros livros do Antigo Testamento) e a alguns poucos salmos – e, para outros especialistas, também ao Livro de Jó, cuja história se passa antes de Moisés, que a teria registrado conforme tradição oral.
3) Cony cita uma passagem de Ezequiel errada e fora de contexto, distorcendo seu significado. Ele diz que é Ezequiel 26, mas é Ezequiel 16, que diz: “Quando nascestes, ainda não vos tinham cortado o cordão umbilical, estáveis completamente nua, eu me apiedei de vós: depois crescestes, vosso seio se formou, vosso sexo cobriu-se de pelos, eu passei e vos vi e cobri vossa ignomínia, estendi sobre vós o meu manto, vos lavei, perfumei e vesti”; e “Então confiante em vossa beleza, fornicastes por vossa conta com todos os passantes e vos prostituístes até nas praças públicas e abristes as pernas a todos os viajantes e vos deitastes com os egípcios, os medas, os persas, os assírios, os caldeus, os filisteus e os homens de todas as tribos ao longo do Eufrates”.
Esse texto é uma metáfora da traição de Israel ao seu Deus ocorrida naquela época (Ezequiel 16.1-3). Deus lembra a Israel, por meio do profeta Ezequiel, que os israelitas foram cuidados por Deus quando ninguém dava nada por aquele pequeno povo (16.4-6). E mais: Deus fez uma aliança com eles (representada nessa metáfora pelo casamento) e os fez grandes (16.8-10). Mas, o que fez Israel tempos depois? Traiu Deus, desprezando os mandamentos divinos para se misturar com os costumes abomináveis dos povos pagãos ao seu redor, praticando inclusive sacrifício de crianças (Leia Ezequiel 16.20). Então, em resposta, Deus reconta metaforicamente o que aconteceu, e de forma forte e contundente, segundo a proporção dos terríveis pecados cometidos por Israel naquele período.
4) Cony trata a história de Oolá e Oolibá como verdadeira (Ezequiel 23), quando trata-se de outra forte metáfora da traição dos dois Reinos de Israel (o Reino do Norte e o Reino do Sul, surgidos após o reinado de Salomão) a seu esposo, Yahveh, detalhada no capítulo anterior (Ezequiel 22). Deus lembra que os dois reinos haviam imitado os povos pagãos, derramando entre si o sangue de inocentes (incluindo crianças) (22.3,4); seus príncipes haviam matado pessoas inocentes também (22.6); extorquindo estrangeiros e sido injustos com órfãos e viúvas (22.7); filhos desrespeitando pais (22.10); homens forçando mulheres (22.10); adultérios e incestos (22.11); subornos e extorsão para derramar sangue (22.12); exploração religiosa (22.2-28), violência e opressão (22.29). Tudo isso era condenado por Deus explicitamente na Lei de Moisés. E o texto bíblico ainda diz que o que estava acontecendo nos dias do profeta Ezequiel era generalizado, quase ninguém escapava (22.30). Depois de tudo isso, será que Deus exagerou ao dizer o que disse?
Em tempo: Oolá significa “tabernáculo dela” e Oolibá, “meu tabernáculo está nela”. As tendas aqui são uma referência ao local de um culto. Ou seja, tratava-se de uma alusão aos cultos e costumes profanos aos quais as duas irmãs – Jerusalém, capital do Reino do Sul de Israel, e Samaria, capital do Reino do Norte de Israel – haviam aderido, fazendo com que ambas fossem abandonadas por Deus naquele período. Jerusalém e Samaria abandonaram os preceitos divinos para seguir às terríveis práticas dos povos pagãos.
O pior de tudo é ver Cony, que desconhece totalmente o que está sendo dito, afirmar que “se precisarem de mim, estou às ordens para fazer o papel de um dos egípcios. Em último caso, de um assírio”. Lembrando que os assírios influenciarem o Reino do Sul (Jerusalém) com seus costumes abomináveis (os assírios adoravam ao deus Adrameleque, que era a versão assíria dos deuses infanticidas Moloque e Camos - o rei Acaz, em sua aliança com os assírios, praticou o infanticídio - 2 Reis 16.3). Diz Deus: "Além disto, tomaste a teus filhos e tuas filhas, que por mim geraras, e os sacrificastes a elas, para serem consumidos; acaso é pequena a tua prostituição?" (Ezequiel 16.20). Para Cony, não. Ele mesmo quer ser um dos assírios!
Ademais, os assírios, em sua relação com os judeus, que alternava alianças e opressão, acabaram destruindo o Reino do Norte (Samaria), isso bem antes de o Reino do Sul (Jerusalém) capitular sob os caldeus. Os assírios mataram milhares de judeus, escravizaram, torturaram e saquearam Samaria. Será que Cony quer ainda fazer o papel deles?
É o que dá falar do que não sabe.

Um comentário:

victor disse...

Graça e paz!Parabéns p/artigo, seria excelente se o artigo pudesse ser encaminhado a este jornalista boçal.abs