Nesta semana, morreu, aos 88 anos, o “Pai da Teologia da Missão Integral”, o teólogo evangélico equatoriano C. René Padilla, que foi, sem sombra de dúvida, um dos mais influentes teólogos no mundo protestante no século 20. Ele chegou a influenciar, por exemplo, nomes como o britânico John Stott, Darrell Guder, Leslie Newbign, David Bosch e Tom Sine. Inclusive, a participação de Padilha na Conferência de Lausanne em 1974 foi decisiva para a formatação do texto final daquele encontro, que foi redigido por Stott. E além da relevância histórica do seu pensamento, Padilha era um homem, até onde sei, conservador teologicamente em algumas posições, como no caso da defesa do método histórico-gramatical; e um ser humano afável, fervoroso em sua fé em Jesus e bem intencionado. Enfim, várias virtudes. Entretanto, apesar de todas elas, é preciso dizer que a teologia que inaugurou tem muitos problemas, não obstante Padilla ter tentado articular suas posições dentro dos limites da ortodoxia protestante, de maneira que não se pode chamá-lo – no sentido clássico do termo – de liberal teologicamente, mas de um cristão de tendência progressista, sem dúvida.
Falo isso como alguém que chegou a abraçar a Teologia da Missão Integral no final dos anos de 1990, justamente por influência de autores da TMI que eu havia lido nesse período – Padilha entre eles. Porém, leituras e reflexões posteriores me levariam a me afastar da TMI ainda nessa época. Meu tempo de simpatia pela TMI deve ter durado no máximo uns dois anos.
A primeira coisa que me incomodou na TMI foi o fato de que, quanto mais eu continuava a ler os textos e a ouvir os discursos dos seus representantes, mas ela me parecia, na verdade, uma versão evangélica e atenuada da Teologia da Libertação, sendo carregada de discursos ambíguos que disfarçavam seu lado marxista, tornando-a mais palatável para o meio evangélico. No meu primeiro contato com a TMI, não havia percebido isso, pois, na sua proposta geral, o marxismo não era explícito; mas, logo que passei do seu frontispício teórico e mergulhei nos deslindes da proposta, a anuência em relação a alguns pressupostos marxistas foi ficando muito clara. Naqueles dias, os seus proponentes insistiam em dizer que a TMI não era marxista, mas a exposição mais detalhada do seu pensamento trazia – em alguns casos, sem nomear a origem – pressupostos marxistas. Exemplos: a crença na tese marxista já superada da “mais valia”; a afirmação de que o capitalismo – naquela época eles falavam mais “neoliberalismo” – é mal e perverso; o entendimento de que o marxismo não é de todo incompatível com o cristianismo; e alguns abonos elogiosos a ideólogos socialistas, a começar do próprio Marx. Logo, comecei a achar a TMI contraditória, dissimulada, ainda mais que vi que seus principais expoentes eram, quase que invariavelmente, ligados politicamente à esquerda.
A segunda coisa que me incomodou é que seus proponentes muitas vezes falavam como se as igrejas que não haviam adotado a TMI não fossem interessadas tanto pelo social, mas historicamente eu sempre vi as igrejas evangélicas se interessando bastante pelo social – pelo menos a maioria, inclusive minha denominação. Então, percebi que por “social” o teólogo da TMI se referia mais propriamente não a ações sociais, mas ao engajamento do cristão com pautas políticas adotadas pelas esquerdas. Ou melhor, se referia à luta pela transformação das estruturas políticas e econômicas da sociedade a partir de pautas que eram comuns às esquerdas.
Por fim, em terceiro lugar, o próprio conceito teológico de “Missão Integral”, defendido por Padilla, foi me parecendo não mais convincente, já que o termo significava, de acordo com ele, que o Evangelho não é apenas pregação da salvação, mas também ação social, e no sentido de a pregação e a ação social serem dois elementos que compõem conjuntamente o todo chamado de “Evangelho”, de maneira que a ação social é tão importante quanto a pregação. Em suma, ambos teriam o mesmíssimo status. Ele usava a figura do avião para ilustrar isso. Escreve Padilla: “A proclamação do evangelho (kerygma) e a demonstração do evangelho que se entrega a serviço (diakonía) formam um todo indivisível. Um sem o outro é um evangelho incompleto, mutilado e, consequentemente, contrário à vontade de Deus. Dessa perspectiva, é tolice perguntar sobre a importância relativa do evangelismo e da responsabilidade social. Isso seria equivalente a perguntar sobre a importância relativa da asa direita e da asa esquerda de um avião” (PADILLA, C. René, Teología Latinoamericana: ¿Izquierdista o Evangélica?, in: Pensamiento Cristiano, XVII / 66, 1970, p. 139).
John Stott, que abraçou a TMI por influência de Padilla (acontecimento que ajudou a legitimar ainda mais a aceitação a essa linha de pensamento dentro das correntes protestantes históricas), repetiria algumas vezes esse discurso de seu colega equatoriano, usando, inclusive, a mesmíssima ilustração das asas do avião usada por Padilha para explicar a TMI, de maneira que muita gente que passou a reproduzir adiante essa ilustração chegava a atribuir sua origem equivocadamente a Stott, quando ele apenas a pegou emprestada de Padilla. Os já mencionados Darrell Guder, Leslie Newbign, David Bosch e Tom Sine, que também abraçaram a TMI, foram, por sua vez, os principais divulgadores desse pensamento em solo norte-americano. O Wheaton College, onde Padilla havia estudado, foi uma instituição que abraçou a TMI oficialmente e a promoveu nos EUA, o que foi celebrado por Padilla.
O meu problema com esse entendimento é que, analisando-o depois mais detidamente à luz da Bíblia, ele já não me soava coerente. Claramente, para mim, o Evangelho era a mensagem de salvação, estando o social intimamente ligado, sim, ao Evangelho, mas como uma consequência inevitável dele e não como parte da essência do que seja o Evangelho. Se os profetas tratavam do social em suas pregações, não era porque o social fosse parte da essência, do coração, da Palavra de Deus, mas porque eles estavam atacando os pecados da sua nação como males que decorriam de um problema espiritual para o qual suas mensagens apontavam. A questão social não era um fim em si mesma em suas mensagens. E se Jesus falava de pregar aos pobres e que são “bem-aventurados os pobres”, Ele não estava querendo dizer com isso que a ação social era um componente central de sua mensagem, mas se referia a levar as Boas Novas de Salvação aos humildes, debilitados, aflitos, necessitados, oprimidos, doentes, marginalizados, aos vitimados pela vida de forma geral, que são justamente as pessoas mais receptivas à mensagem do Evangelho, reconhecendo sua necessidade e dependência de Deus e se abrindo para o Evangelho. O contexto histórico do termo como usado por Jesus e reproduzido pelos evangelistas Mateus e Lucas tem em vista seu uso em passagens como Isaías 66.1-3 e 66.2 – daí Mateus ser ainda mais explícito e falar de “pobres de espírito”.
Em suma, o termo “pobre”, em Lucas, não se refere exclusivamente ao pobre financeiramente falando, mas aos sofridos, marginalizados e desprezados de forma geral, sejam eles por condição social, equívocos religiosos, uma enfermidade, uma ação demoníaca etc, e que eram mais sensíveis por isso à mensagem do Evangelho. Já o termo “rico” em sentido negativo se refere aos poderosos arrogantes, que usam sua posição e poder para oprimir, além de serem egoístas e materialistas.
Em suma, o social, na Bíblia, é uma implicação óbvia e inexorável do Evangelho e não a essência do Evangelho. Padilla, porém, confundia consequência com causa, implicação com componente.
O detalhe é que logo me dei conta de que aquilo que eu estava percebendo ser o mais coerente biblicamente nada mais era do que... A concepção tradicional da ação social na teologia cristã, concepção esta com a qual Padilha estava rompendo. Isto é, aquilo que eu entendia agora como sendo o mais coerente biblicamente era exatamente, justamente, aquilo com o qual Padilla rompera. Logo, não dava mais para alinhar-me com a TMI. Pulei fora, já se vão mais de 20 anos.
O mais curioso é que René Padilla nem sempre pensou assim. Em sua tese de doutorado em 1966, tendo como orientador F. F. Bruce, ele escreveu que (o grifo é meu) “o Evangelho tem implicações sociais” – ou seja, o aspecto social é apenas um desdobramento da pregação do Evangelho. E ainda asseverou: “Para constrangimento do reformador social moderno, em nenhuma das epístolas paulinas há a menor sugestão de que a Igreja acabará por moldar as estruturas sociais ou de que cabe a ela fazê-lo. Sustentar isso [...] é uma modernização arbitrária de seu ensino. A ideia de que a Igreja é uma agência de ‘redenção social’ a ser realizada por meio da permeação da sociedade por princípios cristãos é uma invenção moderna; a tentativa de justificá-lo por um apelo a Paulo ou qualquer outro escritor bíblico está fadada ao fracasso”. Assino embaixo.
Então, o que levou Padilla a mudar de posição tão radicalmente? O contexto social e político da América Latina nos anos 60 e 70, e que ele vivenciou muito de perto nas suas viagens às universidades latino-americanas do continente nesse período. Em 1959, Padilla fora nomeado como secretário itinerante da International Fellowship of Evangelical Students (Associação Internacional de Estudantes Evangélicos) na América Latina, com seu trabalho consistindo principalmente em manter contato com os universitários evangélicos do continente. Ele esteve principalmente acompanhando jovens cristãos nas universidades no Equador, Venezuela, Colômbia e Peru. Em todos esses lugares, ele constatou uma tensão política crescente, fomentada pelos ideais socialistas e o contexto social do período. Os estudantes latino-americanos – inclusive muitos jovens evangélicos – estavam imersos nos escritos marxistas e debatiam com paixão a possibilidade de uma revolução socialista em seus países e no mundo.
David Kirkpatrick, em seu artigo C. René Padilla and the Origins of Integral Mission in Post-War Latin America, publicado em 3 de março de 2016 pela Cambridge University Press, lembra que, em meados da década de 1960, o jovem teólogo René Padilla percebeu que “o influxo de estudantes universitários e o declínio das oportunidades econômicas prepararam o cenário para uma ação revolucionária nas cidades da América Latina”, levando-o a escrever “uma série de artigos sobre isso”, com destaque para La universidad: lo social, lo spiritual (“A universidade: o social, o espiritual”), onde ele “diagnosticou um ‘gargalo social’: um desejo abundante de mobilidade ascendente, mas falta de oportunidade para alcançá-la. Padilla escreveu que ‘A universidade se tornou o ponto dolorido onde a doença de todo o organismo se torna evidente’”. Prossegue Kirkpatrick sobre o conteúdo do artigo:
“A matrícula em uma universidade estava longe de ser uma garantia de melhoria socioeconômica: de acordo com Padilla, apenas cerca de um quarto dos matriculados acabava se formando, e os que se formavam enfrentavam poucas perspectivas de emprego. A maioria das cidades latino-americanas também carecia de uma condição estrutural para integrar uma população tão aumentada. A taxa de urbanização foi muito mais alta do que a taxa de industrialização, em alguns casos até o dobro. Em outras palavras, ‘o processo urbano aumentou os níveis de aspiração social sem aliviar as pressões econômicas’. Isso levou a uma desilusão generalizada, principalmente entre os jovens. A importância da ação política entre os estudantes universitários é melhor compreendida sob este prisma. De acordo com Padilla, ‘as greves estudantis (que às vezes levam ao fechamento da universidade por semanas e até meses) [...] são meras manifestações dos problemas que afligem toda a sociedade. [...] Nessa perspectiva, é possível explicar a importância que a política se dá entre os alunos. […] O agitador profissional procura canalizar a amargura dos oprimidos para as passagens estreitas de uma revolução violenta”.
Por todo esse contexto, esta era uma época fértil para a mensagem socialista, que estava ganhando as universidades e inspirando os jovens ao radicalismo revolucionário, de maneira que Padilla percebia uma alienação dos universitários à mensagem que ele trazia, se sentindo, então, incapaz de se comunicar com eles eficazmente e de responder aos anseios dessa juventude com a simples pregação tradicional do Evangelho. Some-se a isso o fato de que a concretização da Revolução Cubana em 1959 acabou se tornando um fascínio irresistível para esses jovens, fazendo anseios e movimentos revolucionários explodirem definitivamente em toda a América Latina entre a juventude embriagada doutrinariamente com o marxismo. Em reação a isso, houve, como sabemos, uma disseminação de regimes militares repressivos no continente para impedir o avanço desses movimentos que pululavam em todos os países da América Latina com o apoio de políticos de esquerda, o que, em contrapartida, amplificou a revolta dos estudantes engajados na implementação da sublevação marxista.
Ademais, havia também o apelo sedutor do zeigeist, do espírito da época, que dava a impressão àquela juventude de que nada mais ela estava fazendo do que seguindo as forças invisíveis da história, que pareciam apontar para esse caminho de confrontação como a antessala da próxima fase inexorável da história da humanidade que estaria prestes a raiar; isso porque a agitação social não se dava só por estas bandas: havia revoltas estudantis em todas as regiões do mundo, como as de Paris em 1968, as da Grã-Bretanha também em 1968, os protestos nos EUA contra a Guerra do Vietnã no final dos anos 60, o tiroteio na Universidade de Kent em 1970 etc. Só que nenhuma dessas agitações foi mais violenta do que os protestos estudantis na América Latina nesse período, onde até guerrilhas marxistas foram formadas por estudantes. Até jovens evangélicos ingressaram na luta armada.
Então, como a maioria da juventude universitária dos dias de Padilla, contaminada pela coqueluche ideológica do momento, preferia se entregar aos empreendimentos revolucionários, os quais achavam mais próximos de seus anseios imediatos, além de coincidirem com as visões utópicas de mundo que suas almas haviam absorvido, Padilla dirá: “Neste contexto, eu me vi carente de uma ética social. Meus anos de estudos nos Estados Unidos não me prepararam para o tipo de reflexão teológica que era urgentemente necessária em uma situação revolucionária” (PADILLA, C. René, My Theological Pilgrimage, in: Journal of Latin American Theology, IV/2 (2009), p. 97.
É nessa atmosfera que vão surgir as duas teologias sociais latino-americanas: a Teologia da Libertação, de origem católica, propugnada por Gustavo Gutiérrez; e a Teologia da Missão Integral, de origem evangélica, propugnada por Padilla. Elas surgem na tentativa de transformar o Evangelho mais atraente para os jovens desse período, com uma mensagem que falasse mais aos anseios políticos e sociais daquela geração. E qual foi a saída proposta por elas? Ambas propuseram revisar o entendimento teológico tradicional sobre a relação entre a fé e a ação social, sendo a Teologia da Libertação mais direta e radical em sua proposta e a Teologia da Missão Integral sendo um pouco menos radical, mas igualmente confrontadora da visão bíblica tradicional sobre o assunto.
A influência marxista foi clara desde o início, como ressalta Kirkpatrick nos parágrafos que reproduzo a seguir:
“Escobar e Padilla estavam imersos no mesmo meio que os teólogos da libertação – engajados nas questões levantadas por estudantes universitários. De fato, quando o evangélico peruano Pedro Arana (sucessor de Padilla como secretário geral do IFES para a América Latina) era um líder estudantil do IFES, ele se matriculou em ‘vários cursos de verão’ com seu colega peruano Gustavo Gutiérrez, como as palestras em julho de 1968 em Chimbote, Peru. Essas palestras mais tarde se tornaram a obra-prima de Gutiérrez, Uma Teologia da Libertação. Escobar lembrou-se de Arana visitando sua casa depois e discutindo as palestras”.
“O IFES na América Latina operou com um olhar constante para a evolução da situação política. Samuel Escobar, em particular, notou a íntima conexão entre revolução e teologia em 1966, ano da morte do padre guerrilheiro católico Camilo Torres Restrepo. No ano anterior, Torres havia feito um apelo direto aos estudantes universitários da Colômbia, no jornal La Gaceta, para que se juntassem à revolução marxista. Escobar descreveu a situação revolucionária que encontraram os funcionários da IFES em universidades latino-americanas nas décadas de 1960 e 1970: ‘Por volta de 1966, o desafio do marxismo e dos nacionalistas de esquerda em geral deixou de ser apenas ideológico e político. [...] A guerra de guerrilhas como forma de alcançar o poder e transformar o mundo rapidamente se tornou uma doutrina e prática extremamente atraente, especialmente nas universidades. Cada questão relativa à violência e subversão tocou, de uma forma ou de outra, o campo da teologia e do ensino da Bíblia’”.
“Evangélicos protestantes como Padilla e Escobar não ficaram imunes à atração da revolução. As questões colocadas pelo marxismo desafiaram o cerne de sua teologia. Samuel Escobar lembrou-se de ter sido ‘tentado’ quando jovem pela análise social marxista de classe e poder; falou sobre a enorme lacuna entre ricos e pobres no Peru e a hegemonia óbvia da classe dominante. René Padilla creditou aos professores do ensino médio equatorianos ‘marxistas e ateus’ por terem ‘implantado’ questões de justiça social e paz em sua mente desde muito jovem. O próprio Padilla não via o marxismo como inerentemente incompatível com o cristianismo, mas advertiu contra o uso da análise científico-social como uma 'camisa de força ideológica' para a Bíblia: uma acusação que ele dirigiu a alguns teólogos da libertação, como Juan Luis Segundo. Padilla recorreu aos escritos de um escocês, o teólogo de Princeton e escritor sobre o cristianismo latino-americano John A. Mackay, junto com os de escritores mexicanos como Gonzalo Báez-Camargo e Alberto Rembao. No entanto, em vez de ‘vaciná-lo’ contra o marxismo, como foi a experiência de Escobar com Mackay, essa literatura estimulou a busca de Padilla por uma teologia social evangélica latino-americana. Padilla refletiu que ‘Minha leitura desses autores afirmou em mim a convicção de que minha total incapacidade de articular uma resposta cristã às perguntas feitas por meus professores se devia à falta de uma dimensão social do evangelho que recebi em casa: um evangelho de salvação individual pela graça, por meio da fé em Jesus Cristo, e pouco mais do que isso’”.
Padilla tentou, entretanto, ter todo cuidado para que sua nova teologia não descambasse para o radicalismo da Teologia da Libertação, se tornado completamente marxista. Ele queria, sim, interagir com o marxismo, mas sem ser dominado por ele. Mais propriamente, ele não queria construir uma teologia que fosse um combate à Teologia da Libertação, mas que fosse uma opção a ela, uma espécie de meio-termo, algo mais suave, que pudesse atrair aqueles que estavam sendo atraídos pela TL – eis o problema. Escreve Padilla: “A questão para mim não é: ‘Como reajo à Teologia da Libertação, de modo a mostrar suas falhas e incongruências?’ Em vez disso, como articulo minha fé no mesmo contexto de pobreza, repressão e desesperança de onde surgiu a Teologia da Libertação?” (PADILLA, C. René. Liberation Theology: An Appraisal, in: Freedom and Discipleship: Liberation Theology in Anabaptist Perspective, edited por Daniel S. Schipani. Maryknoll: Orbis Books, 1989). Sua saída, já vimos, foi dizer que o Evangelho ou a Missão da Igreja, o “Ide”, não é apenas fazer discípulos, levar vidas a Cristo, mas também é – e com o mesmo status de importância – suprir as necessidades físicas das pessoas, promovendo uma ação social em favor dos pobres e – o que era considerado o ponto mais importante – a serviço da “justiça social” (O espaço não permite, mas em outra oportunidade falarei sobre esse polêmico conceito denominado “justiça social” e sua origem).
Apesar de todas as tentativas dos proponentes originais da TMI de tentaram atenuar um pouco a influência marxista na elaboração de sua teologia para mantê-la dentro dos limites do evangelicalismo, o Movimento de Missão Integral acabou se tornando, com o passar do tempo e em sua esmagadora maioria, um instrumento de inserção da ideologia de esquerda no meio evangélico. Era inevitável: as sementes estavam todas lá, a influência marxista estava lá, desde o começo, mesmo que relativamente atenuada.
Uma teologia não deve ser avaliada apenas pelo que afirma em seu preço de face (isso é apenas a primeira coisa a ser analisada), mas também pelas implicações práticas de suas afirmações, pela aplicação do que afirma na realidade concreta e os frutos decorrentes dessa aplicação. Não adianta eu afirmar que não defendo determinada coisa se as implicações práticas de minhas posições e a aplicação de minha visão e propostas produzem naturalmente aquilo que eu digo não defender.
Vejamos, por exemplo, o caso do Brasil. O que a TMI produziu aqui?
Em nosso país, as ligações entranháveis da TMI com a esquerda são mais do que notórias. O falecido bispo Robinson Cavalcanti, o principal expoente da TMI em nosso país, era, de forma aberta e declarada, politicamente de esquerda. Ele era filiado ao PT desde os anos 80, tendo coordenado a campanha presidencial de Lula entre os evangélicos nas eleições de 1989, 1994, 1998 e 2002, chegando até a ser vice na chapa do PT à Prefeitura de Olinda (PE) em 1996. Ele foi o primeiro evangélico a aparecer em uma propaganda política do PT na televisão pedindo em rede nacional voto para o partido – no caso, para Lula, na eleição presidencial de 1989. Aliás, essa foi a primeira vez que tomei consciência da existência de Robinson Cavalcanti. Em 1990, ele fundou o Movimento Evangélico Progressista (MEP), que reúne as principais lideranças da esquerda política evangélica no Brasil. Sobre a fundação do MEP, ele afirmou, em um artigo publicado pelo próprio MEP e que resume o conteúdo de uma palestra proferida por ele em 29 de agosto de 2003, em Brasília, intitulada Os Cristãos Progressistas e a Crise da Esquerda no Brasil: “Lembro-me do debate sobre a nomenclatura mais adequada quando da fundação do MEP: ‘Evangélicos de esquerda’? ‘Evangélicos revolucionários’? ‘Evangélicos socialistas’? Optamos pela expressão menos controvertida de ‘progressistas’, embora isso lembre um conceito positivista. Hoje poderíamos falar em um ‘cristianismo profético’, em ‘Igreja profética’, em cristãos que incluem o profetismo – denúncia das estruturas iníquas da sociedade – em seu conceito de missão a serviço do Reino de Deus”.
Em 1991 e 1993, o MEP realizou dois fóruns nacionais de “Discussão e Entendimento entre Evangélicos e Partidos Progressistas”, com a presença de parlamentares de esquerda como José Dirceu e José Genoíno, do PT, e Roberto Freire, que deixara o Partido Comunista Brasileiro em 1992 para fundar o Partido Popular Socialista.
Em seu artigo já mencionado Os Cristãos Progressistas e a Crise da Esquerda no Brasil, Robinson Cavalcanti afirmou ainda que “a disseminação da proposta da Teologia da Missão Integral da Igreja em nosso continente e em nosso país” se deu pela “contribuição do Congresso de Lausanne e seu Pacto, e da Fraternidade Teológica Latino-Americana [fundada por Padilla, Samuel Escobar e seus amigos]”, e que “o Movimento Evangélico Progressista (MEP) é uma legítima expressão desse momento histórico”, isto é, uma legítima expressão da Teologia da Missão Integral no Brasil. Em outras palavras, a TMI é de esquerda, é socialismo cristão, já que o MEP é sua legítima expressão no Brasil e ele é declaradamente de esquerda.
Um parêntese para falar rapidamente da Conferência de Lausanne de 1974, cujo contexto tem tudo a ver com nosso assunto: ela foi um marco histórico, sendo o primeiro evento a reunir as principais lideranças evangélicas do mundo, quase 3 mil de todas as regiões do planeta. O evento só aconteceu pela influência e o investimento da Associação Evangelística Billy Graham – AEBG. A história do evento começa em 1969, quando o Conselho Mundial de Igrejas (CMI) realizou sua terceira e grande Conferência Evangélica Latino Americana. Preocupado com a influência do liberalismo na América Latina via CMI, que atraiu muitas igrejas, teólogos e pastores latino-americanas por ser aberta a teologias como a Teologia da Libertação (abrigada e desenvolvida explicitamente em seu órgão ISAL), a AEBG realizou em outubro do mesmo ano o 1º Congresso Latino-Americano de Evangelização (CLADE I), onde foi distribuído a todos os participantes um livro do missiólogo carismático C. Peter Wagner (1930-2016), intitulado Teologia Latino-Americana: Radical ou Evangélica?. René Padilla, Samuel Escobar, Peter Savage, Pedro Arana, Emilio Antonio Nuñez e Rolando Gutierrez discordaram do texto de Wagner, afirmando que a questão era muito mais complexa, que havia um paternalismo por parte da liderança missionária estrangeira e que era preciso uma teologia evangélica mais contextual, isto é, que levasse em conta o contexto político-social da América Latina. Então, em dezembro do ano seguinte, eles se reúnem e criam a Fraternidade Teológica Latino-Americana (FTL), em decorrência das objeções levantadas por eles no CLADE I e também como contraponto do radicalismo da Teologia da Libertação do ISAL (“Iglesia y Sociedade em América Latina) da CMI. Em seguida, Padilla publica artigos sobre seu novo pensamento em vários periódicos evangélicos, inclusive o artigo What is the Gospel? ("O que é o Evangelho?") na revista Christianity Today em 1973. A AEVB realiza então a Conferência de Lausanne em 1974, fruto das discussões da CLADE I, e a voz de Padilla e seus amigos é ouvida. Padilla faz um discurso histórico no evento, no qual usa pela primeira vez o termo “Missão Integral” e acaba ganhando como aliado John Stott, relator de Lausanne. O resto é história.
Voltemos ao Brasil.
O cientista político Paul Freston, na sua tese de doutorado Protestantismo e Política no Brasil: da constituinte ao impeachment (1993, UNICAMP), afirma, com toda razão, que Robinson Cavalcanti foi “a maior influência” da esquerda “à comunidade protestante” no Brasil nos anos 90, tendo “estimulado a filiação de protestantes ao PT” (p. 276). Cavalcanti fora antes um “social-democrata”, como ele se definia até a metade dos anos 80, tendo, inclusive, sido filiado ao PP e se candidatado a deputado estadual pelo PMDB, além de ter sido assessor do ex-governador pernambucano Jarbas Vasconcelos, do PMDB. Entretanto, desde a segunda metade da década de 80, abandonou a social-democracia para abraçar o socialismo, filiando-se inclusive ao PT.
Em sua obra A Utopia Possível – Em Busca de um Cristianismo Integral (Ultimato, 1993), Cavalcanti afirmaria que “um anticomunismo irracional e primário priva a igreja de um exercício profético em relação à sociedade e ao Estado” (p.21). Em sua obra A Igreja, o País e o Mundo – Desafios a uma Fé Engajada (Ultimato, 2000), ele lamentaria que “o mundo capitalista” tenha vivenciado nos anos 80 “uma maré ideológica conservadora, a era Reagan-Thatcher-Khol-João Paulo II”, o que ele chamava de “um mundo retrógrado, reacionário, cinzento” (p. 74). Cavalcanti referia-se ao capitalismo como um “sistema demoníaco” e aos Estados Unidos, como “O Império do Mal”, onde Satanás “acampa o seu trono”, onde se é disseminado pelo mundo “a heresia neoliberal”, “a lei e não a graça”, o “trabalho sem prazer”, “a feiura” e “o fanatismo e a chatice religiosa” (pp. 52 a 54); e ainda louvava a CUT e o MST como braços da solução que o Brasil precisava (p. 116).
O bispo anglicano lamentava que “nas favelas”, devido à ação das igrejas, “salva-se dos vícios”, mas “sem se encarnar nas associações de moradores, nos sindicatos ou nos movimentos e partidos populares [isto é, de esquerda]”, com os crentes dessas comunidades se preocupando apenas “com a esperança do além” e “uma prosperidade futura” (p. 59). Parece que para Cavalcanti o novo homem em Cristo deveria se engajar em movimentos e partidos de esquerda, se quisesse mesmo demonstrar seu avanço espiritual. Almejar o céu e procurar prosperar na Terra em vez de se tornar militante do partido parecia-lhe sinal de declínio. Imagino a depressão que lhe deve ter dado constatar que a maioria esmagadora dos pobres que vinham a Cristo em sua época – e ainda hoje – preferia as igrejas pentecostais e neopentecostais à vida de militância da TMI (Se bem que a principal crítica de Cavalcanti era aos neopentecostais, devido à teologia da prosperidade adotada por eles – a qual também abominamos – e porque os pentecostais eram menos fechados à TMI do que os neopentecostais; por outro lado, a maioria dos pentecostais que se mostraram mais abertos à TMI não abraçaram seus pressupostos marxistas, aceitando apenas uma ênfase ainda maior no social).
Cavalcanti classificava como “mártires cristãos” no Brasil, cujo sangue é “a semente da fé” e cujo “sacrifício” devemos “honrar” – gente que, inclusive, segundo ele, devemos “valorizar” porque o que fizeram seria o nosso “legado” – nomes como o protestante Paulo Stuart Wright (p. 65), guerrilheiro do grupo comunista Ação Popular Marxista-Leninista (AP), do qual foi, inclusive, representante oficial na reunião da Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS) realizada em Havana, Cuba, em 1967. A OLAS reunia as guerrilhas de esquerda da América Latina e defendia a luta armada e a guerra de guerrilhas como mecanismo para levar a revolução comunista a toda América Latina.
Após atuar clandestinamente no Brasil por oito anos na Ação Popular, Wright foi detido por 48 horas pelo DOI/CODI em 1973 e, após ser liberado, desapareceu, sendo considerado vítima da Ditadura Militar. Ninguém está aqui a abonar o que aparentemente aconteceu com Wright (abominamos tortura), mas a verdade é que sua conduta, como guerrilheiro comunista de um dos grupos mais violentos – a Ação Popular, que assassinou principalmente civis em suas ações – e como apoiador de uma ditadura comunista como a de Cuba, querendo inclusive implantar o mesmo no Brasil, não deve ser uma inspiração para nós, cristãos.
Outros exemplos de “mártires cristãos” que deveríamos honrar, segundo Cavalcanti, são o padre Camilo Torres Restrepo (já mencionado aqui em minha citação de Kirkpatrick), que era um guerrilheiro do comunista Exército de Libertação Nacional, morto em confronto na Colômbia; e Oscar Romero, arcebispo católico de El Salvador, assassinado em 1980 (p. 65). Destes, só o católico Romero escapa como alguém que não apenas não se envolveu com guerrilhas comunistas como também manteve aparentemente certa distância de segurança das ideias de esquerda, embora simpatizasse um pouco com elas. Homem pacífico, ele foi covardemente assassinado enquanto pregava.
É verdade que Cavalcanti chegou a negar algumas vezes que a Teologia da Missão Integral seja uma versão camuflada da Teologia da Libertação para evangélicos, mas ele teve aqui e acolá alguns acessos de sinceridade, além de, sempre que podia, tecer elogios à Teologia da Libertação, como quando afirmou em sua obra A Igreja, o País e o Mundo que cria que “a Teologia da Libertação deu uma contribuição muito importante ao cristianismo […] dando uma abertura positiva à reflexão marxista” (p. 154). Abrir o cristianismo para o marxismo é, para Cavalcanti, “uma contribuição muito importante”.
Em seu artigo de 2003 já mencionado aqui, Os Cristãos Progressistas e a Crise da Esquerda no Brasil, Cavalcanti lamenta que Lula e o PT tenham rasgado em 2002 a "Carta de Olinda", com suas propostas de governo com caráter claramente de extrema-esquerda, para substituí-la pela “Carta ao Povo Brasileiro” de viés social-democrata, com o objetivo de eleger-se naquele ano. E lamenta que Lula, logo que assumiu, tenha seguido fielmente esta carta, mantendo o tripé econômico do Plano Real (um dos poucos grandes acertos da vida do líder do PT). Ou seja, o bom para o Brasil, segundo Cavalcanti, é a implementação dos ideais puros da esquerda, os ideais socialistas, sem relativismos, a agenda original do PT.
Ainda no referido artigo, ao falar sobre a história da esquerda evangélica, do que ele chama de “socialismo cristão”, ele diz que “essa construção [o socialismo cristão] se retrai com a hegemonia do marxismo, para, posteriormente, vermos se disseminar entre nós a Teologia da Libertação e a Teologia da Missão Integral da Igreja”; e arremata: “A esquerda não morreu [com a “Carta ao Povo Brasileiro”], mas renascerá sempre das cinzas. [Com a ajuda de quem? Ele informa:] A Igreja Profética será capelã dessa gênese do novo. ‘As coisas velhas já passaram, mas eis que algo de novo está surgindo’”. Em suma, de acordo com Cavalcanti, a TMI é um instrumento desse propósito.
Na edição de 31 de agosto de 2003 do jornal O Globo, página 18, Cavalcanti deu o depoimento de que quando a Confederação Evangélica do Brasil, “que funcionou entre 1934 e 1964 com propostas socialistas que antecederam a fundação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)”, foi “implodida e, com a repressão, explodiu na Igreja Católica a Teologia da Libertação a partir dos anos 70, os evangélicos ficaram meio retraídos. Mas quando a Igreja Católica substituiu bispos progressistas por conservadores, começou a surgir a Missão Integral da Igreja, a versão evangélica da Teoria da Libertação”. Nesse período, ainda segundo Cavalcanti e conforme o registo de O Globo, “os cristãos não-católicos começaram, através de organizações não governamentais (ONGs), a se engajar na política de esquerda, participando ativamente das campanhas de Luiz Inácio Lula da Silva em 1989, 1994, 1998 e 2002”, sendo “aí que surgiu o Movimento Evangélico Progressista (MEP)”, que nessa época (2003) já tinha “inclusive deputados eleitos pelo PT”.
O bispo anglicano acrescentaria ainda em seu depoimento em 2003 que se naqueles dias os evangélicos ainda eram “minoria no partido [o PT]”, seria porque eles achavam “que Lula está muito moderado”. Ou seja, para Cavalcanti, Lula deveria ser mais socialista. Frustrado com o primeiro ano do primeiro mandato de Lula, ele afirmou a O Globo: “O MEP defende o ideário socialista cristão, mas o presidente Lula está se inclinando para a social-democracia, e fazendo pacto com as elites. Nosso projeto é uma sociedade pós-capitalista”. Mais claro impossível.
Outro nome de destaque da Missão Integral no Brasil é Ariovaldo Ramos. Na seção “Pergunte ao Ari”, da revista Ultimato, edição de setembro/outubro de 2013, Ariovaldo Ramos respondeu uma carta do leitor Filipe Reis, de Parintins (AM), com a seguinte pergunta: “A teologia da missão integral dialoga com o marxismo ou mesmo se apropria de alguns pressupostos marxistas? Se sim, como articular cosmovisões contrárias uma à outra?”
Em sua resposta publicada naquela edição, Ariovaldo Ramos disse que (os grifos são meus) “a teologia da missão integral dialoga com o marxismo, assim como dialoga com A Riqueza das Nações, de Adam Smith, com o capitalismo, porque nós estamos tentando responder à grande pergunta humana: ‘Qual é o sentido da vida, para o que nós existimos, de onde viemos, para onde vamos e como devemos viver?’. Então, nós dialogamos com todo mundo, inclusive com outras confissões de fé. Nós estamos lutando pela humanidade como todo mundo. Agora, se o que você está perguntando é se a teologia da missão integral lança mão do referencial teórico-marxista, a resposta é não. Considera as análises marxistas, entende a validade de muitas de suas análises – principalmente em relação à questão da mais valia, a questão da natureza do capitalismo etc –, mas não lança mão do referencial teórico”.
Com todo respeito, mas o que vemos acima é uma contradição. Ariovaldo afirma que a TMI não lança mão do referencial teórico-marxista, mas na sequência assevera que a TMI não apenas considera as análises marxistas como entende que muitas delas são válidas, dentre elas “a questão da mais valia” e “a questão da natureza do capitalismo”, e ainda coloca um “etc”. Ora, somente esses dois pontos já se constituem o coração do pensamento marxista. E ainda há um “etc” – ou seja, mais pressupostos marxistas aceitos. Quais seriam?
Não sabemos da parte de Ariovaldo o que abrigaria esse “etc”, mas seu colega Robinson Cavalcanti considerava o capitalismo “demoníaco” e aprovava a tese marxista da “luta de classes” em um dos capítulos de sua obra A Igreja, o País e o Mundo. Ora, se temos na TMI a aceitação da teoria da mais valia, do capitalismo como demoníaco e da teoria da luta de classes, dizer que o TMI não é marxismo é dizer que uma determinada ave tem olhos de pato, bico de pato, patas de pato, penas de pato, cabeça de pato, grasna como pato e tem DNA de pato, mas não é pato. Isso lembra a pergunta do comediante norte-americano Groucho Marx: “Afinal, você vai acreditar em mim ou nos seus próprios olhos?”
Os apoios explícitos de Ariovaldo Ramos, o principal nome hoje da TMI no país hoje, a Hugo Chaves e Fidel Castro, bem como sua oposição ao impeachment de Dilma Rousseff e à prisão de Lula, subindo em palanque inclusive para discursar em defesa deste no dia da sua prisão, só mostra como a TMI é envolvida até as entranhas com a esquerda. Trata-se da instrumentalização da fé à serviço dos ideais de esquerda.
Não é à toa que Ariovaldo Ramos, em seu artigo Candidatos em nome de Deus, assinado em parceria com a jornalista Nilza Valéria Zacarias da Visão Mundial Brasil e publicado no Le Monde Diplomatique Brasil, edição de 20 de maio de 2014, confessava que a Teologia da Missão Integral é “uma variante protestante da Teologia da Libertação” (http://archive.fo/usZmo).
Outros nomes poderiam ser citados, como o de Ricardo Gondim, que era filiado ao PT e, conforme suas próprias palavras, militou pela eleição de Lula em todas as eleições (GONDIM, Ricardo, Carta Aberta ao Presidente da República, 6 de junho de 2005 in: www.ricardogondim.com.br, seção “Estudos” (http://www.ricardogondim.com.br/estudos/carta-aberta-ao-presidente-da-republica/). Em sua entrevista à revista Cristianismo Hoje, Brasil, em 2008, ao jornalista Sérgio Pavarini, Gondim asseveraria: “Sou um pensador independente, de esquerda. Não acredito no neoliberalismo capitalista. Ele produz os excluídos. O Evangelho defende os pobres e os marginalizados”.
Melhor assim. É preferível que as posições sejam claras, como são hoje, do que ambíguas como eram antes. Isso é honesto.
Nos EUA, para encerrarmos com mais um exemplo, apesar do apoio do britânico John Stott e também de Darrell Guder, Leslie Newbign, David Bosch e Tom Sine à TMI, bem como da promoção da mesma por instituições respeitadas como o Wheaton College, muitos líderes evangélicos conservadores no país se opuseram à resolução do Pacto de Lausanne por acharem-na muito à esquerda, progressista. Billy Graham tentou convencer esses líderes divergentes a mudarem de ideia, mas não foi tão feliz nesse sentido, e a tensão continuou nos anos seguintes. Basta dizer que, como Robert A. Hunt afirma em seu The History of the Lausanne Movement, 1974-2010 (International Bulletin of Missionary Research, 2010), na segunda Conferência de Evangelização (“Lausanne 2”) realizada em 1989, em Manila, Filipinas, os organizadores da conferência tentaram afastar os conceitos de Missão Integral e promover o retorno do conceito tradicional, mas a influência da TMI já era forte, sendo abraçado por grande parte dos participantes.
Uma vez chancelada, a TMI entrou nos EUA, e o fruto de sua influência naquele país foi a criação de uma divisão dentro do evangelicalismo norte-americano que não existia até então e que perdura até hoje, tendo sido radicalizada nos últimos anos: de um lado, o evangelicalismo conservador, que passou a ser chamado de “Direita Evangélica”, com seu conceito tradicional da Missão da Igreja; e do outro, a chamada “Esquerda Evangélica”, que levou às últimas consequências o novo conceito da Missão da Igreja esposado pela TMI. Essa crise de identidade no evangelicalismo norte-americano começou a aparecer justamente no final dos anos de 1970 e início dos nos anos de 1980, e como consequência direta das discussões geradas em Lausanne, internalizadas agora para o contexto norte-americano, como explica, por exemplo, Michael Clawson, da Universidade de Baylor, em seu artigo Misión Integral and Progressive Evangelicalism: The Latin American Influence on the North American Emerging Church, publicado em 14 de junho de 2012 na revista Religions, do Departamento de Religião daquela instituição.
Em linhas gerais, o que se convencionou chamar de “Direita Evangélica” é formada por evangélicos conservadores que concordavam com a necessidade de envolvimento com as questões sociopolíticas, mas suas preocupações nessa área eram diferentes daquelas de irmãos influenciados pela TMI: se concentrava mais em questões como aborto, drogas, moralidade sexual, relação Igreja e Estado etc. Já a o que se convencionou chamar de “Esquerda Evangélica” é formada por evangélicos influenciados pela TMI e que focavam seu envolvimento em questões sociopolíticas em temas como justiça social e econômica, oposição ao militarismo norte-americano, ambientalismo (crença na destruição da camada de ozônio e no aquecimento global antropogênico) etc.
Até os anos de 1990, a “Esquerda Evangélica” – ou os “evangélicos progressistas”, como passaram a ser denominados também – eram uma minoria dentro dos EUA, que reclamava da hegemonia da “Direita Evangélica”, a qual chegaram a ter vergonha de ser associados. Porém, o grupo passou a ganhar uma proeminência na virada dos anos de 1990 para os anos 2000, no movimento denominado “Igreja Emergente”, com Brian McLaren, Rob Bell etc.
A filha de René Padilla, Elisa Padilla, congregou na igreja de Brian McLaren, em Maryland, de 2002 a 2004. Michael Clawson, em seu artigo supracitado, conta que Elisa “o desafiou a abordar questões de justiça econômica de forma mais substancial e, por fim, apresentou McLaren a seu pai. O ancião Padilla convidou McLaren para viajar com ele pela América Latina por vários meses em 2005 e 2006, período durante o qual Padilla o orientou na teologia latino-americana. [...] McLaren também foi apresentado a Tomas, Dee Yaccino e Robert Guerrero, líderes de ‘La Red del Camino para La Misión Integral en América Latina’, uma rede de igrejas latino-americanas e líderes religiosos comprometidos com a prática da missão integral em seus contextos locais. McLaren desenvolveria uma amizade e parceria com esses líderes para outros eventos e projetos. De acordo com McLaren, essas conexões foram altamente significativas para o desenvolvimento de seu pensamento e influenciaram muito a maioria de seus escritos desde pelo menos 2005, incluindo seu trabalho mais explícito sobre justiça social e missão integral até hoje, Everything Must Change: Jesus, Global Crisis and a Revolution of Hope, que ele completou enquanto viajava com Padilla pelas Américas Central e Sul”.
Clawson prossegue: “Por meio dos livros de McLaren e de inúmeras palestras, essas ideias foram filtradas para o restante do movimento emergente americano. Em suas sessões na Convenção Emergente de 2005, McLaren apresentou ao seu público o termo ‘misión integral’ (explicando por analogia o ‘pan integral’, o termo espanhol para pão de trigo integral, portanto, nas palavras da McLaren, ‘missão de trigo integral’) e afirmar que a ‘misión integral’ era essencialmente a mesma que os emergentes norte-americanos também estavam tentando elaborar em sua nova visão pós-moderna do evangelho. Da mesma forma, ‘Tudo deve mudar’ tornou-se a base para uma série de 12 conferências em cidades ao redor dos Estados Unidos na primavera de 2008, durante as quais McLaren foi capaz de estimular discussões sobre justiça social e missão integral entre milhares de participantes. Por causa do papel de liderança central da McLaren entre os emergentes, sua apropriação da teologia da missão integral e sua própria mudança em direção a um maior ativismo político pela justiça social tiveram um impacto significativo no movimento emergente como um todo, tornando, em certo sentido, o movimento emergente um descendente direto norte-americano tanto da teologia latino-americana da década de 1970 quanto do evangelicalismo progressista que esta inspirou e informou. [...] As sementes da missão integral plantadas por Escobar, Padilla e outros na década de 1970 estavam começando a dar frutos tremendos na igreja norte-americana, especialmente entre aqueles que se consideram cristãos emergentes”.
Lembrando que nessa época Brian McLaren chegou a estar na lista da revista Time como um dos 10 evangélicos mais influentes nos EUA naqueles dias.
Mesmo o movimento emergente não conseguindo vingar anos depois, devido ao radicalismo progressista no qual seus proponentes originais acabaram descambando depois, eles conseguiram colocar em circulação temas como justiça social, ambientalismo e outros que estavam até então sem proeminência no meio evangélico norte-americano. Como exemplo, mesmo nomes como Tim Keller e Rick Warren passaram a falar mais sobre esses assuntos, e a própria revista Christianity Today deu uma guinada em direção ao progressismo evangélico de 2004 em diante, como frisa Clawson, simplesmente triplicando a quantidade de artigos em suas edições falando sobre "justiça social" e questões ecológicas (notadamente, a defesa de agendas como a da tese do aquecimento global antropogênico) em relação ao que se via nos anos anteriores.
Outro fato importante é que, em 2005, Jim Wallis publica seu livro God’s Politics, criticando fortemente a “Direita Evangélica”. Isso coincide com o desgaste do governo de George Bush em seu segundo mandato devido à Guerra no Iraque. Os evangélicos estavam sendo culpados pela mídia pela reeleição de Bush e isso serviu para catapultar a “Esquerda Evangélica” no país. Vários livros são publicados por autores da “Esquerda Evangélica” e se tornam best-sellers. Alguns deles (poucos) são, inclusive, publicados no Brasil nos anos seguintes; mas, antes mesmo de serem publicados em português, já eram lidos e seus posicionamentos repercutidos por nomes no Brasil ligados à TMI. Eu mesmo vou lançar nessa época meu livro A Sedução das Novas Teologias (CPAD, 2007), onde, na quarta capa, explicava o contexto do surgimento dessas novas teologias, desenvolvidas e promovidas pela chamada “Esquerda Evangélica” nos EUA.
Enfim, por mais bem intencionado que Padilla tenha sido, sua proposta teológica tem muitos problemas, como já vimos, e os frutos que advieram desses problemas também estão aí para confirmar.